Tudo Calmo
Duas horas da matina, acordo devagar, sem sobressaltos. Não me lembro de ter sonhado algo que me deixasse alerta; apenas acordei.
Ao meu lado, minha esposa dorme tranquila, com a respiração leve e compassada. Ela dorme para o meu lado, com as mãos juntas sob o rosto. Este é um pequeno segredo só meu que descobri durante os anos de convívio: quando ela dorme assim, eu sei que o dia seguinte será alegre para ela. Não sei porque mas talvez seja porque ela estaria sonhando algo agradável e que ficaria registrado no seu subconciente pelo dia inteiro?
Porém, se ela dormir para o outro lado ou sem as mãos juntas, já adivinho que as coisas não serão simples para ela no dia seguinte. Quando isto acontece, eu mando algum recado amoroso ou mesmo levanto mais cedo para fazer um café mais caprichado. Algumas vezes até funciona. Mas, seja como for, cerco-a de todo o carinho para que ela atravesse o dia sentindo-se bem.
Hoje, está tudo bem para ela. Mas não para mim. Não consigo dormir. Tento escutar os ruídos lá fora, mas ninguém caminha pela rua, nem os carros passam.
Há algo no ar que não consigo explicar. Não é uma sensação ruim; é apenas algo que me deixa alerta.
A luz da rua que passa pela janela cria formas distorcidas na parede. Movo os olhos da janela para a parede e de volta para a janela, imaginando a trajetória da luz. Surpreendo-me rindo comigo mesmo da imaginação geométrica num momento tão diferente como este. Só existe uma maneira de resolver esta trigonometria: comparar a luz da rua com a parede. Quem sabe, por cansaço, o sono me volta?
À janela, sigo a luz até a parede. Calculo mentalmente, refaço os cálculos e fico ali admirando a luz. De fato, a ciência triunfa mais uma vez porque tudo faz sentido na distorção da geometria.
Mas, a rua não possui somente a luz dos postes; parece que vejo algo balançando-se levemente no ar, indo e vindo de um lado para outro. Algo como se fosse a fumaça de um cigarro mas com vontade própria, como se quisesse chamar minha atenção.
A forma então para, bem no meio da rua e parece olhar-me. Eu a olho fixamente e, aos poucos, se torna mais visível, ainda diáfana, mostrando-se como o delicado contorno de uma mulher.
Eu sei, eu sinto, que ela está levando a mão ao coração e depois estendendo-a para mim. Eu começo a entender o que se passa e lágrimas começam a rolar pelas faces. Mas, não estou triste porque aquela mulher não me passa tristeza. Ela, então, coloca as mãos aos lábios e me envia um beijo carinhoso que eu tento agarrar. Ela parece sorrir, coloca as duas mãos novamente no coração e se inclina em sinal de reverência como se me dissesse: “Eu te respeito e te amo!” Eu também me inclino em sinal de igual respeito.
Devagar, ela me acena num adeus que eu retribuo. Agora, as lágrimas caem sem parar dos meus olhos, enquanto ela se afasta lentamente pela rua, até desaparecer e eu, com o braço ainda erguido desejando um adeus sincero.
Fico a olhar a rua mas não sinto vontade de me mexer e nem de calcular geometrias. Naquele silêncio, ouço o bater do meu coração, compassado, sem desespero. Não sei quanto tempo fiquei à janela.
Voltei para a cama e dei um beijo carinhoso em minha esposa sentindo que sua pele não tinha mais aquele suave calor que tanto me enternecia.
Pela última vez, deitei ao seu lado e senti o sono vir porque, agora, está tudo calmo!
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