O Despertar
– Mais outro dia no escritório!
Não me importo mais se estou chamando a atenção do inimigo ou não. Parei de contar os dias e nem me lembro quando cheguei aqui, enfiado neste buraco mais parecendo um coelho na sua toca. As horas passam cada vez mais devagar com a neve que cai e com o vento servindo de testemunha à minha agonia enquanto aguardo o inimigo chegar. Ah, como seria bom se ele chegasse de uma vez para acabar com minha agonia!
E eu puxo o gatilho da metralhadora, cuspindo fogo num inimigo invisível bem defronte a mim.
– Tomem isto e mais isto, bastardos! Venham me pegar se conseguirem!
Eu disparo até sentir o vazio mecânico da cinta de balas. O som abrupto das últimas balas ricocheteiam à distância e voltam como um longo e abafado estalo.
Então, tal como a fumaça da pólvora desaparecendo no ar, o silêncio retomou seu espaço. Árvores, pássaros e até mesmo o vento haviam parado em respeito ao cobre e ao chumbo que drenavam minha raiva e minha ansiedade.
Eu escuto e prescruto tudo ao redor. Tudo parece estar quieto. Somente alguns poucos flocos de neve, muito poucos, atrevem-se a cair dos galhos e repousar no chão tão gentilmente como a estar com medo de quebrar a importância do momento.
Perdi a noção do tempo que fiquei ali, imóvel, estático, observando atento a qualquer movimento ou som diferentes.
Algo se moveu atrás de uma grande árvore abaixo, quase na estrada. Parece…
– Finalmente, o inimigo!
Meu coração estava pulsando violentamente mas não poderia dizer se de medo ou de alegria. Um soldado estava caminhando entre as árvores em minha direção. Ele deu alguns passos e se escondeu, ou pelo menos tentou se esconder, porque eu conseguia vê-lo observar ao redor com cuidado. No seu ombro, uma carabina de longo alcance com telescópio, indicando ser um atirador de elite. Congelei, temendo fazer qualquer movimento que me denunciasse a presença. A metralhadora estava descarregada e meu rifle estava às minhas costas, fora de alcance. Eu estava sem defesa, apenas com um revólver, contra um atirador à distância. Seria muito difícil para mim atingi-lo e eu seria presa fácil para ele no meu escritório! Suprema ironia! Escritórios não sofrem ataques de atiradores de elite!
Ele estava sozinho e, conforme se aproximava de mim, começou a se mover para a direita mas ainda agindo como se alguém o observasse. “Será que ele sabe que eu o estou vendo?” Agora, ele já estava se afastando. “Estranho, ninguém mais ao redor, somente ele. Será que ele também está perdido?” Sentindo-me mais protegido, tateei à procura do meu rifle e decidi segui-lo.
Deixando uma distância segura entre nós e fazendo passos bem calculados, tomei exatamente a mesma direção que ele, pisando exatamente nas mesmas pegadas de modo a disfarçar meu caminhar caso ele decida mudar de idéia e voltar atrás.
Em algum ponto, perdi-o de vista enquanto me movia entre uma árvore e outra. Talvez ele tenha notado minha presença e estaria preparando uma emboscada embora visse que suas pegadas se dirigiam a outra árvora. Fiquei quieto, tentando controlar minha respiração ofegante, respirando fundo de vez em quando para relaxar. Olhei com cuidado mas não o via.
Ainda bem colado à arvore, mantive-me bem alerta para quaisquer sinais de movimento. Gradualmente, fui relaxando e as batidas fortes do meu coração foram sendo substiuídas pelo barulho suave do vento trazendo sons abafados parecidos com gansos pastando grama luxurienta. “Gansos?” Segui novamente seus passos até a próxima árvore e os sons começaram a ficar mais familiares, tais como pessoas conversando e rindo. “Pessoas falando e rindo? Numa guerra?”. Os sons pareciam ser suaves e sem medo como se não existisse uma guerra em andamento.
Arrastando-me devagar na neve, aproximei-me do lugar onde vinham as vozes. Cheguei até uma clareira e vi muitas pessoas de diferentes idades, talvez umas cem, homens e mulheres em uniformes militares de ambos os lados, bem como civis, formando grupos ao redor de aquecedoras fogueiras, conversando alegremente como se bombas e tiros não estivessem sendo despejados lá mais adiante. Tudo parecia uma grande festa, oficiais entrosados com soldados e, ainda mais estranho, aqui e ali, alguns casais se dando as mãos, mesmo de diferentes países!
Seria talvez um casamento, embora não pudesse ver o noivo e a noiva. As pessoas estavam bebendo e comendo algo que parecia ser apetitoso disposto sobre mesas organizadas nos dois lados da área. De tanto em tanto, bancos onde soldados feridos descansavam, sem no entanto apresentarem uma condição crítica, nem mostrarem dor ou mesmo sangue. Ou seja, como se estivessem se recuperando no jardim de algum hospital mas sem existir médicos ou enfermeiras à vista. “Como isso seria possível?”
Quando eu me encontrava nas trincheiras, para aliviar a tensão, contávamos histórias, uma sobre uma viúva que convidou alguns soldados que estavam a ponto de se trucidar para tomar uma sopa bem quente, na condição que todos deixassem suas armas no celeiro. O repasto foi simples mas energizante, quase em silêncio, uns inimigos olhando desconfiados os outros inimigos, até que ela indicou que pegassem suas armas e seguissem em direções opostas. À sua maneira, ela foi uma heroína sem estátua e sem reconhecimento, breve episódio de paz esquecido numa noite fria de um canto qualquer, enquanto o mundo todo parecia sofrer um longo estertor de fogo e morte. O engraçado de tudo é que eu sabia que o outro lado também contava uma história semelhante à sua própria maneira. De fato, pensei, pessoas com senso humanitário dificilmente são honradas com estátuas porque o que elas fazem é praticar sinais de compaixão sem se importar com quem, mesmo inimigos e, por definição dos orgulhosos, o inimigo não mereceria trégua e, portanto, o inimigo estaria sempre errado e precisaria sempre ser destruído. “O inimigo bom é inimigo morto!”, eu ouvi muitas vezes.
Eu estava tão absorvido pela cena e por meus pensamentos que nem notei um par de botas à esquerda. Gelei! Na minha posição, até uma criança poderia me matar facilmente! Com movimentos lentos, olhei à direita para estudar a situação. Outro par de botas! “Pegaram-me!” Temendo o pior, pelo menos morreria enfrentando o inimigo, vi um camarada e o atirador, ambos estendendo suas mãos desarmadas para me ajudar a levantar.
– Venha conosco, amigo! – disse-me um deles – chega de guerra, chega de medos, chega de sofrimento!
Sua voz era suave e não mostrava arrogância nem temor. Dei alguns passos relutantes atrás deles avaliando a possibilidade de fugir mas o convite parecia ser irresistível, até porque eles nem se importavam em me vigiar. Chegamos à uma mesa onde me ofereceram uma bebida reconfortante e deliciosos manjares que não experimentava a muito tempo. Eles acenaram para que eu me juntasse aos outros. Enquanto caminhava, todos paravam as conversas, cumprimentavam-me acenando com suas cabeças. Alguns até brindavam comigo com suas taças! Outros, até batiam palmas discretas à minha passagem. Senti-me relaxando e entendendo que a felicidade poderia ser simples, bastava ser cordiais uns para os outros. Levaram-me até um grupo perto de uma fogueira, onde fui apresentado e recebido com calorosas boas vindas e onde notei que a linguagem nem os ideais eram mais as barreiras.
Agora, eu estava entre amigos e a guerra parecia ter finalmente terminado para mim…
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