Descobertas
O Inspetor de Polícia sacudiu os ombros resignado quando um dos seus auxiliares apontou para um resto de uniforme encontrado enterrado.
– É do outro lado! – Este fato mudaria tudo e traria uma grande onde de complicações para muitas pessoas, especialmente a ele.
Alguns dias antes, nesta floresta, um alpinista havia tropeçado num pedaço de metal que, até para um inexperiente, parecia ser a ponta de uma arma qualquer. Imediatamente, ele contactou a Polícia relatando o achado.
A guerra já havia terminado a cerca de 50 anos mas descobertas ocasionais ainda ocorriam em ambos os lados. O inspetor sabia que a investigação deste tipo de episódio costumava ser longa e, geralmente, acabavam por ser um incômodo e razão para protestos, sem falar que interferiam na vida normal das pessoas vivendo nesses lugares, muitos deles sem nada a ver com a guerra. Muitas vezes, quando as evidências eram de pequena monta para fazer qualquer diferença e mudar a História, ele simplesmente as ignorava para evitar embaraços e confiscos do local pelas autoridades. Ele trocava olhares cúmplices com os residentes, punha as provas de volta e saía sem dizer uma palavra. Silenciomente, as pessoas agradeciam e, às vezes, até davam um presente que ele recusava para não dar na vista.
Este caso exigia um tratamento bem burocrático porque um soldado do lado de lá foi encontrado morto do lado de cá. E havia também o lado emocional já que familiares dos soldados dados como desaparecidos em ação sempre gostavam de ter as notícias finais dos seus membros, mesmo após tanto tempo, isso se fôsse possível localizá-los.
Antes de mais nada, ele teria que parar imediatamente com as investigações e colocar guardas para evitar invasões no local. Enquanto isso, ele deveria começar um longo procedimento burocrático que incluiria: preencher um relatório detalhado com fotos e filmagens mostrando o achado e, em seguida, enviá-lo a um comitê nacional especializado em processar e analisar ocorrências de pós-guerra. O comitê teria que se reunir (por causa do tempo decorrido desde o término, somente se reunia esporadicamente) e analisar o relatório, verificar se ele se aplicaria à guerra, decidir sobre a importância e implicações políticas, produzir um novo relatório que seria então enviado a um comitê semelhante do outro lado. Quando esse outro comitê se reunisse e fizesse o mesmo trabalho de análise e consideração política, verificasse se estivesse em sua alçada lidar com o assunto e ponderasse sobre as implicações políticas para a História do seu país, então, em tudo correndo bem, o comitê recomendaria uma reunião conjunta com nosso comittê para deliberar o assunto e, se tudo corresse bem novamente, seriam apontados um representante de cada país para investigar o acontecimento e produzir um relatório final com provas que pudessem encerrar o assunto ou abrir caminho para mais investigações e trabalhos.
Sua indicação como representante seria praticamente evidente devido à sua experiência anterior com casos semelhantes e também porque foi ele quem iniciou a investigação. Como sua patente era de Chefe de Polícia, o outro lado deveria indicar alguém com a mesma relevância hierárquica, no mínimo.
Como esses casos costumam trazer publicidade negativa, nenhum político se interessaria pelo assunto, razão pela qual ele não esperava que os trabalhos fossem reiniciados antes de no mínimo três meses por toda burocracia envolvida, na melhor das hipóteses. Enquanto isso, ele seria responsável por manter no mínimo dois guardas no local, dia e noite, para protegê-lo de pilhadores e protestos, principlamente estes, alguns defendendo a guerra e outros contra. Ocasionalmente, os grupos de protestos acabavam por chocar-se entre si e pessoas machucadas não eram raras de serem mandadas para hospitais. Por sorte, esta floresta ficava fora das rotas normais o que significava que as pessoas não estariam propriamente interessadas em ficar muito tempo longe de casa. Supostamente, quando os trabalhos começassem, o interêsse público já estaria quase que esquecido e ocasionalmente haveria apenas alguma breve notícia nos noticíarios.
Um mes depois, ele removeu um dos guardas e, em seguida, deixou guarda somente nos finais de semana para evitar que andarilhos ocasionais entrassem na área em questão.
Quase seis meses depois, o Inspetor foi informado que um professor (um professor? porque não um chefe de polícia?) de uma universidade do outro lado chegaria em poucos dias para iniciar o trabalho conjunto de investigação do sítio, cavar cuidadosamente o lugar, juntar todos objetos de valor histórico e separá-los por país, bem como fazer o relatório final. Se não ocorrerem contratempos e se não houvessem discussões a respeito, a expectativa é de que poderiam terminar tudo em algumas poucas semanas.
O Professor era um cavalheiro que compreendia perfeitamente no problema que ambos estavam metidos. Em poucas palavras trocadas, descobriram-se partilhando a ideia de se desvencilharem do incômodo o mais rapidamente possível produzindo um relatório que não incomodasse ninguém, deixando que os museus de cada lado lidassem com seus respectivos objetos encontrados. Eles compreendiam que museus de guerra existiriam para mostrar fatos grandiosos da sua própria nação e raramente apresentariam fatos negativos como derrotas, por exemplo. Tudo estaria organizado em prateleiras cuidadosamente organizadas para melhor efeito, com manequins uniformizados e grandes áreas apresentando equipamento pesado. Em tais museus de guerra, todos os objetos possuiriam o rótulo “HISTÓRIA DAS NOSSAS BRAVURAS”, de modo a atrair pessoas pagantes, tudo cuidadosamente selecionado para não chocar os corações mais sensíveis, na maior parte representando a bravura de soldados locais ou a plena garantia da vantagem técnica e do preparo para a guerra. Ali, não se mostraria sofrimentos pessoais, nem os momentos horríveis que as guerras são especialistas em criar. Na verdade, os museus de guerra são um convite para comprar um ingresso para a próxima batalha porque, todos ali, sentiriam o orgulho de estarem em guerra e de sempre vencê-las…
A escavação revelou que só existia um único soldado que teria morrido enquanto disparava com a metralhadora, a julgar pelo grande número de cartuchos vazios ao derredor. Aparentemente, ele teria sido atingido por um objeto grande e pesado baseando-se na fratura no seu crânio, com cabelo esmagado misturado com sangue e ossos quebrados.
Se ele estava atirando, qual era o alvo? Se fosse uma breve escaramuça, talvez ele tivesse afugentado alguns inimigos que o estariam perseguindo. De outra forma, existiriam corpos espalhados que teriam sido encontrados a muito tempo atrás. Portanto, qual era seu alvo? Eles seguiram a possível direção das balas até a raiz de uma velha árvore que, quase com certeza, teria caído sobre ele. Ao redor da raiz, eles encontraram várias balas que conferiam com o calibre da metralhadora. Porque ele faria tal coisa, isto é, atirar desordenadamente para uma árvore em particular? Talvez ele não estivesse mais raciocinando corretamente e estivesse atirando em inimigos imaginários representados pela árvore?…
No pequeno espaço em que ele vivia, encontraram restos de muitos ossos de pequenos animais e, espalhadas, muitas latas de ração militar já corroídas pelo tempo, além de farrapos de cobertores.
Tudo indicava que ele viveu ali por dois ou três meses no rigor do Inverno porque ele estava vestindo roupas pesadas quando morreu. Talvez, pesadas chuvas que se seguiram cobriram o lugar com barro e folhas mortas. De certa forma, ele foi silenciosamente enterrado num túmulo de soldados desconhecidos…
Na verdade, desconhecido ele não era porque encontraram restos dos seus documentos nos seus bolsos, com partes de uma foto e do nome intactos graças a uma medalha de bronze comprimindo o local. Não seria difícil para o Inspetor e o Professor identificatem o soldado mais tarde.
Terminado o dia de trabalho, jantando com um bom copo de cerveja local, eles pesquisaram alguns livros e descobriram o tipo de medalha que o soldado foi agraciado na linha de frente das batalhas. Um embaraçoso silêncio se fez entre os dois…
– Chefe, escute… – o Professor finalmente quebrou o silêncio – …os tempos de guerra são tempos difíceis. Num instante, você poderá ganhar uma medalha e perder a vida no minuto seguinte, já que você em combate numa guerra. Tenho a certeza que isso também aconteceu com meus camaradas também. O Inspetor intentou interromper, mas o Professor prosseguiu:
– Pergunte a si mesmo, chefe: porque e como esse soldado obteve aquela medalha? Por ter matado meus camaradas ou por ter sido ferido por eles? Nós simplesmente não sabemos o que aconteceu. Ele poderia ter achado a medalha sem ter feito nenhum ato de bravura. Guerras são coisas sujas feitas por pessoas que, de outra forma, seriam incapazes de ferir quem quer que seja. Entretanto, suas mentes ficam distorcidas pelos horrores que eles enfrentam que acabam se travestindo destes horrores. Metralhadoras, aviões ou tanques de guerra não fazem os horrores que as guerras criam; são pessoas como você e eu que fazem estes horrores ao puxar o gatilho destas armas. E, quanto mais natural achamos esses horrores, tanto mais horrores somos capazes de infligir sem ao menos sentir o menor remorso ou dor. Assim que a guerra termina, você e eu começamos a nos dar conta do que fizemos e é, então, que nos sentimos aprisionados pela culpa e pelo arrependimento. É nesse momento que decidimos não guerrear mais. Mas, todos morremos e outros começam a sentir aquela coceirinha guerreira de novo e acabamos por ir à guerra uma vez mais. Nós, como seres humanos, somos muito inteligentes mas nunca aprendemos a não repetir o trágico passado. Não me surpreendo quando vejo as novas gerações de nossos países já engajados em provocações de parte à parte.
O Inspetor acariciou a medalha por alguns instantes.
– Que tal se enterrássemos a medalha de volta na cova do soldado? Não sabemos a história completa da medalha mas sabemos que ela pertenceu ao campo de batalha tal qual o soldado que lá estava.
Trabalho terminado, todos os objetos importantes coletados, relatório pronto, o Professor partiu levando de volta a história de um soldado valoroso e corajoso que resistiu, sozinho, contra todos e a tudo, tempos muito difíceis para defender sua pátria e os valores que sua pátria representavam…
Confira a Parte 1 aqui.
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