
Um Dia Como Outro Qualquer no Escritório
– Mais um dia como outro qualquer no escritório! – eu falei alto para mim mesmo, apenas para me calar no momento seguinte e ficar imóvel, quase sem respirar, olhos e ouvidos atentos para quaisquer movimentos e sons diferentes. Ninguém deve descobrir que estou aqui, principalmente o inimigo.
Meu “escritório” é um cubículo cavado sob uma grande árvore podre no meio de uma floresta perto da fronteira com o país contra o qual lutávamos, no Inverno particularmente rigoroso e pesadas nevascas frequentes.
Num dos lados do escritório, durmo num catre feito por várias camadas de cobertores doados por meus camaradas soldados, juntamente com as indestrutíveis acículas de pinheiro¹. No outro lado, pilhas de caixas de comida enlatada militar. No meio, eu tenho espaço apenas suficiente para espichar as pernas e engatinhar até a “porta” do escritório, ou seja, uma lona militar endurecida pelo frio e bem disfarçada por um monte natural de grandes pedras que também evitam que eu pise diretamente na neve, o que denunciaria meus passos. Para completar, às vezes eu ponho alguns galhos de pinheiro aqui e ali dando uma aparência mais natural ainda.
Calor do fogo, somente quando está nevando muito, já bem escuro, num fogareirinho que me deixaram de presente. Quem se arriscaria a andar na floresta, nevando, à noite?
Meu país está em guerra com o país vizinho não sei por quais exatas razões. Nem sei quem fez a agressão inicial em quem, já que eventos agressivos de parte a parte foram aumentando até que houveram invasões sofridas pelos dois lados. Embora ambos declarem estar vencendo, ainda estão em andamento três anos de mortes, destruição e violações de toda ordem. Quem sofre mais são as populações das cidades ao longo da fronteira com bombardeios constantes. Às vezes, nossas tropas invadem uma cidade e colocam nossas bandeiras nos edifícios mais altos, preferentemente em igrejas para mostrar que nossa religião é a melhor que a deles, somente para ouvir, dali a poucas horas ou dias, o inimigo fazendo o mesmo com nossas igrejas.
Ao longo dos séculos, nossos países estiveram em constantes brigas na maior parte das vezes por motivos religiosos, mas também porque falamos diferentes línguas, cada lado proclamando sua superioridade sobre o outro, cada lado se declarando herdeiros de uma pura linhagem de guerreiros destemidos e orgulhosos.
Quando eu ainda estudava, um professor teve a coragem de dizer que todos éramos descendentes do mesmo povo num passado perdido no tempo. Sua audácia custou-lhe caro porque eu parou abruptamente de lecionar e foi encontrado coletando lixo nas ruas para sobreviver em cidade distante.
Tal como contado pelos nossos livros de História na escola, as últimas lutas mais sérias aconteceram a mais de 80 anos atrás, quando nossas cidades foram arrasadas e as vidas dos nossos valorosos cidadãos patriotas tomadas durante a destruição, quando o outro lado nos invadiu sem razão aparente. Eu que aprendi a ler e escrever por esforço próprio a outra língua, descobri que os livros de História deles falam de acontecimentos bem parecidos com os nossos…
E, agora, estamos em guerra de novo!
Eu sou jovem mas já sofri bastante, bem como vi outros também sofrerem porque eu luto no corpo-a-corpo, encarando o inimigo frente-a-frente e vendo todo tipo de destruições que uma guerra possa trazer. Eu sou um daqueles “sentados” na primeira fila vendo as faces aterrorizadas das crianças feridas, vendo esposas e maridos que perderam os cônjuges, lutando para preservar a vida de crianças enquanto tentam manter-se vivos. Eu sou um daqueles que viu muitas casas destruídas, bem como forçado a destruir outras tantas. Eu sou um daqueles que tentam esconder minhas emoções quando vejo seres humanos escondendo-se nas pilhas de destroços, morrendo de fome e de frio. Eu sou um daqueles que vejo seres humanos iguais a mim vasculhando com as próprias mãos à procura de migalhas enquanto nós marchamos impávidos alimentados pelas nossas rações militares. Eu sou um daqueles a ver idosos fugindo desesperados porque não têm mais forças para lutar, somente para morrer de inanição e fraqueza em estradas lamacentas. Se um general sentisse na própria carne os horrores que eu sinto e vejo somente por 24 horas, tenho certeza que ele acabaria toda luta imediatamente!
Enquanto o vento sopra sua canção arrepiante através das árvores da floresta, eu inspeciono com meus binóculos a curva da estrada ao longe para uma chegada potencial de alguma infantaria e lamento comigo mesmo: “Porque? Porque precisamos destruir nossos corpos e nossas almas somente para provar que somos melhores que nossos vizinhos? Que tipo de suprema ironia acontece quando um representante religioso, supostamente um intermediário de Deus, uma pessoa que teria a missão de espalhar – em nome desse mesmo Deus, a gentileza, a perseverança, a caridade, o amor e a humildade – orgulhosamente abençoa canhões e soldados para que eles possam matar o maior número possível de inimigos? Que tipo de trabalho humanitário fazem os médicos que vão à guerra para curar as feridas de soldados para vê-los se ferir novamente ou matar outros assim que ficam razoavelmente curados? Que tipo de moral tem uma esposa ao inspirar seu marido a ir à guerra, sabendo que este homem talvez venha abusar de outras esposas ou de saber que outros maridos poderão vir a abusar delas também? Que tipo de coragem demonstram generais, montados em suas fortemente protegidas salas de guerra, quando cortam precocemente as vidas de jovens ao enviá-los aos campos de carnificina, tudo em nome da bravura e orgulho de uma nação?
Foram estas perguntas sem respostas que me levaram a este buraco gelado quando eu as fiz ao meu mal-humorado e despreparado oficial comandante. Alguns dos meus camaradas apontaram seus dedos sujos de sangue para mim quando eu discuti estas idéias com eles. Alguns até partilhavam minhas idéias mas seu silêncio eram reveladores do senso comum das populações que não querem ir para a guerra mas eram massacrados pela vibração dos guerreiros que elevavam o orgulho acima de todos os melhores sentimentos humanitários.
Para me punir sem me levar a julgamento, este oficial deixou-me para trás com o propósito “corajoso” de observar os movimentos do inimigo. Se observasse algo importante na estrada ao longe, eu deveria ligar o velho rádio e comunicar o quartel-general imediatamente.
– Uma recomendação especial – ele me disse – não use o rádio a não ser o absolutamente necessário porque o inimigo poderá te ouvir e vir atrás de ti!
De fato, foi um grande “aviso” colocar-me em isolamento total em meio à neve. Antes de saírem, algumas das “vozes silenciosas” tentaram me confortar deixando algumas coisas boas para que eu não sofresse tanto, como cobertores, chocolates, revistas e qualquer outra coisa que não os deixasse em dificuldades. Eles até tentaram aumentar o tamanho do meu escritório, mas não é fácil cavar a terra quase sólida e congelada com pequenas pás. Um dos meus detratores até me deixou uma metralhadora como símbolo de “solidariedade”. “Que solidariedade é essa”, pensei. “Ele somente queria descarregar o peso dos seus ombros!…”. Junto com a metralhadora, ficou bastante munição, o que aliviou as mulas para carregar coisas para eles.
Perdi a conta dos dias que se passaram. Não notei qualquer movimento do inimigo a menos que eu estivesse dormindo quando ele passou pelo meu campo de visão. Tropas em ação sempre fazem algum barulho, seja por caminhões, cavalos ou conversas esporádicas. Em meio à floresta, é fácil ouvir sons que se descatam do usual sussurrar das árvores ao vento. A neve constante poderia ter disfarçado os rastros mas, no geral, não acredito ter perdido qualquer acontecimento não usual.
Nestes dias de completo isolamento com a alva neve cobrindo tudo, frequentemente encontro-me falando comigo mesmo, o que poderia ensejar que o inimigo me descobrisse. Tem horas que eu não me importo; quisera alguma ação para variar, mas nada acontece. Será que estou perdendo a razão? São notórias as histórias de soldados que entram em desvario após longos períodos de espera e quietude. Ou seja… Triste conclusão, soldados são “construídos” para lutar e sobreviver, matar ou morrer e, se isto não acontece, eles entram em processo de decepção e constrangimento a ponto de perderem a própria noção de vida? Quisera não pensar nisso, quisera apenas continuar minha rotina sem maiores envolvimentos com o meu próprio ser interior que me mantém dentro de uma linha de bom senso…
“Espere!” Algo se move atrás de uma árvore bem à minha frente. Eu posso ver neve voando ritmicamente tal como se alguém rastejasse. Meu coração pulsa forte e procuro lentamente, sem olhar, meu fuzil. Posso sentir o frio do metal da arma, fria demais, mas irá esquentar assim que começar a atirar. Meu isolamento está me pregando peças? Vejo duas orelhas pontudas. “Uma lebre procurando algo para comer?”. Já havia notado algumas rastros aqui e ali mas ainda não havia visto nenhum. Minha mente entrou em conflito porque eu desejo comer algo fresco, quente, tal como a carne tenra de uma lebre ao invés da mesma ração militar de sempre. Sim, conflito, porque eu precisaria atirar e fazer barulho, muito barulho até acertar. Porém, não poderia perder aquele momento…
“Que se dane! Estou em meio ao nada, com ninguém ao redor! Vamos agitar o ambiente aqui!”. Posicionei-me junto à metralhadora e atirei à vontade. Eu vi as balas atingindo a árvore e a neve. Num dado momento, eu vi a lebre voar e o vermelho manchar a neve.
– Peguei-te! – gritei. Então, só o silêncio do vento nos galhos e o eco distante dos tiros.
Fiquei imóvel por um longo tempo, praticamente prendendo a respiração. Nada do inimigo, nada de movimento a não ser a nave caindo devagar. Nada mais.
Finalmente, recuperei-me quando meus dedos começaram a sentir o frio do metal da metralhadora. Cautelosamente, arrastei-me até minha pequena vítima, seus olhos bem abertos como a dizer que ele (ela?) não fazia parte da guerra e que não tinha nada contra mim. Um pedaço do corpo estava espalhado pela neve mas, quem se importa?
– Hoje, terei comerei algo de verdade!
“As noites nas cidades não são noites verdadeiras!”
Com o crescente medo do escuro e dos perigos em potencial que ele pode trazer, ruas, casas e todos lugares de uma cidade adornam-se cada vez mais com luzes na vã suposição de que os cidadões estejam protegidos. Medo real ou não, o fato é que as cidades projetam sua luz para a céu como se fossem um cone que praticamente apagam o brilho das estrelas e faz com que o céu fique mais claro. Nada surpreendente, nas cercanias de uma cidade, as estrelas impressionam quem não está acostumado com as noites sem luzes artificiais. “É uma pena, porém, que as luzes de uma cidade não a protejam das bombas e da destruição…”.
Agora, na noite sem estrelas e no escuro das árvores, qualquer luz, por mais apagada que seja, parece ser um farol à distância. Pensando sinceramente, naquele momento eu não estava dando a mínima para isso quando fiz um precário churrasco de lebre no pequeno fogareiro. Nunca antes um jantar – se assim poderia chamar aquela carne chamuscada de jantar – teve tanto significado para mim. Comi como um rei!
Já em meu catre, fiquei pensando como pequenas coisas tornam-se tão relevantes quando somos privados delas. Um amigo ou um parente está sempre conosco e não damos muita bola; porém, um belo dia, seja qual for o motivo, eles desaparecem de nossa vida. Então, começamos a nos dar conta do quanto perdemos e do quanto sentimos a falta deles. Temos abundante comida nos supermercados, tanto que não levamos em conta quanto comemos nem quanto jogamos fora até o dia que algo excepcional acontece – tal como uma guerra – e o menor grão de arroz adquire uma importância enorme e é capaz de virar razão para disputas. “Aquela lebre foi o meu grão de arroz nesta noite!”.
E eu dormi como nunca dormi antes em minha vida…
(1) Acículas de pinheiro: são as “folhas” dos pinheiros em forma de agulhas rígidas.
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