
Plantas
Os dois policiais que me visitaram em meu escritório foram muito polidos e diplomáticos, mas não impediram que a notícia que me trouxeram tenha sido boa: minha mulher morrera a menos de duas horas atrás num acidente de trânsito
e eles não haviam conseguido contato comigo porque eu havia desligado meu celular para uma reunião importante.
É nestas horas que se compreende o que é ter-se uma pessoa muito querida junto da gente e, num átimo, esta pessoa não estar mais ao nosso lado. Só pensei nisso naqueles primeiros momentos de choque e nada mais. Lembro-me apenas vagamente meus colegas tentando me consolar e prometendo ajuda, sem nenhuma certeza do que diziam.
Pode ser que eu seja um pouco egoísta, querendo a presença dela para sempre, mas formávamos um belo par de cúmplices em tudo que fazíamos e acho que éramos quase um casal perfeito. Nos entendíamos bem, tanto nos momentos alegres quanto nos momentos em que discutíamos sobre um fato ou outro que não nos agradasse. Viajávamos juntos, saíamos juntos e conversávamos bastante sobre a vida, a situação do país ou de como seria a melhor forma de ajudar esta ou aquela pessoa sem criar embaraços. Nos revezávamos dirigindo quando íamos a algum lugar, principalmente quando um ou outro precisava do carro. Tínhamos nossa casa do jeito que mais gostávamos e nos sentíamos confortáveis, sem onstentação.
Na resolução das formalidades de reconhecimento do corpo, preparativos do enterro e a própria cerimônia, eu praticamente andava como um zumbi, no que fui muito ajudado por um colega, único amigo entre todos, que fez tudo para mim. Durante o velório e no próprio cemitério, ele me disse depois, eu estava irreconhecível e sem palavras, mal apertando a mão de quem vinha me dar os pêsames. Não derramara uma única lágrima, mas minha dor era visível à distância, deixando-me praticamente anestesiado.
Terminadas as cerimômias, meu amigo me deixou em casa, prometendo retornar no dia seguinte. Eu estava exausto e acabado, e nem sei o que se passava em minha mente, tão rápidos foram os acontecimentos que levaram minha querida embora. Deitei-me arrasado.
Dormi mais de 24 horas seguidas, somente acordando quando meu amigo quase botou a porta abaixo. Trouxe-me algumas coisas para comer, mas pouco comi. Ele falou que nosso chefe havia me dispensado por alguns dias, tentou trocar algumas palavras comigo, mas não fui nem um pouco agradável e ele acabou indo embora.
Sozinho, olhei para nossa casa, procurando pela voz e a presença da minha amada, mas não nada vi e nada ouvi.
Neste instante, caí em mim e comecei a soluçar profundamente e chorei durante muito tempo, liberando minha dor represada.
Nos dias que se seguiram, pouco comi, não saí de casa e fui muito apático com meu amigo. Nas suas breves visitas, cada vez mais esporádicas, pois ele já estava começando a perceber que eu não queria ser ajudado, ele arrumava algumas coisas aqui ali, trazia alguma comida, molhava as plantas e limpava um pouco a cozinha. Até meu chefe veio me visitar, dizendo que minhas férias tinham se acabado e que estaria esperando por mim nos próximos dias. Entendi que ele estava procurando me incentivar a voltar à vida normal e, ao mesmo tempo, colocar um ponto final em minha ausência.
Não dei bola à ninguém e continuei minha luta na tristeza e completo abandono de tudo. Há muito já não atendia ao celular e a bateria acabara, bem como também não ligava a televisão. Mal me alimentava e emagreci muito, talvez mais por tristeza do que falta de nutrição.
Um dia, levantei-me com uma dor de cabeça terrível, esfomeado. Fui à cozinha e vi o completo abandono e bagunça, com louça suja pela mesa e pia. No refrigerador, somente um resto de queijo que comi com vontade. Descobri, então, que meu amigo não aparecia mais e que estava só, numa casa vazia.
Procurei a foto da minha amada que estava sobre a cômoda na sala. Lá estava ela, olhando de lado e sorrindo para mim. Alegrei-me somente para ficar triste novamente. Acariciei o porta-retratos como se estivesse acariciando o rosto dela. Queria tanto trazê-la de volta e apertá-la junto a meu coração, mas ao pegar o porta-retratos, minha mão trêmula bateu num pequeno vaso de flores que espatifou-se no chão.
Ela gostava muito das plantas e tinha-as espalhadas pela casa. Cuidava-as com muito carinho e até falava com elas. Em retorno, elas eram bonitas, verdes, floridas e enchiam nossa casa de alegria. Porém, a plantinha do que restou do vaso estava morrendo, se já não estivesse morta. Olhei ao redor, todas estavam num estado muito ruim, feias, e praticamente secas. Minha esposa se fora, morta, não por minha culpa, mas as plantas estavam se indo também, porque eu estava deixando-as morrer. Talvez até fosse melhor assim porque as almas das plantas estariam seguindo-a. Mas, e se eu pelo menos conservasse a vida das plantas como recordação da vida da minha querida?
Abri as janelas para entrar luz e reguei as plantas, tentando ajeitar o melhor que pude as que não tinham morrido. Joguei fora o que já não tinha mais jeito para não passar por um segundo entêrro, mesmo que esse fosse ecológico e simbólico.
Depois de muitas semanas, saí pela primeira vez disposto a deixar de lado tudo que passei. Fui caminhando até nosso restaurante favorito perto de casa, admirando as árvores, as flores e até a grama verde que, todos, agora me pareciam com vida e me traziam uma energia e amor interior pelas boas lembranças que me traziam. Pedi nosso prato que sempre pedíamos e me deliciei com ele, imaginando que ela também o estaria apreciando. Notei que algumas pessoas olhavam furtivamente para mim e imaginei que minha história já tivesse circulado pelas redondezas. Quando terminei, o gerente veio até mim dizendo estar feliz por me ver de volta e não quis que eu pagasse a conta em homenagem ao meu “renascimento”.
Nos dias seguintes, botei a casa em ordem e tentei contactar minha empresa. Na verdade, ex-empresa, porque eu havia sido demitido por abandono do emprego e até meu amigo polidamente desconversou um contato comigo. Agora, estava sozinho, eu e minhas plantas, as plantas que minha amada gostava tanto. Peguei livros para estudar melhor como cuidá-las e, agora, minha casa era quase um jardim.
A vida prosseguiu com as minhas tentativas de arranjar um emprêgo. Certa feita, voltando de mais uma entrevista frustrada, vi uma floricultura e a procurei. Eles precisavam de alguém para cuidar de plantas e, como referência, mostrei algumas fotos das plantas de casa no meu celular. Fui contratado na hora!
Hoje, estou feliz e, imagino, esteja onde ela estiver, também estará feliz minha querida, rodeados pelo que amamos fazer…
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