
Bom Dia!
— Dia!
— Dia! — respondo de maneira automática, sem sequer levantar a cabeça ou olhar para a porta.
Não que eu não seja educado ou não goste de pessoas; mas é que todas passam tão ligeiras pelo corredor que, pelo tempo necessário para me virar e olhar naquela direção, já não consigo mais ver quem me cumprimentou.
Aliás, justiça seja feita, a grande maioria dos escritórios neste edifício é minúscula, com uma porta que mal deixa passar um indivíduo abrindo para um longo corredor mal iluminado. A impressão que tenho é de que todos que por aqui passam, o fazem por obrigação e querem sair o mais rápido possível. Não os culpo; eles têm a liberdade de ir e vir. Já eu, por infelicidade, trabalho aqui, sozinho, com vários armários de metal ocupando pequeno espaço, uma mesa, uma cadeira e um computador que já viu tempos melhores. Para completar o ambiente confrangedor, existe uma abominação bem à minha frente pendurada na parede, um daqueles quadros tridimensionais que mudam de cena conforme se movimenta o ângulo de visão: uma paisagem linda de uma praia a constantemente me provocar com palmeiras, rochas e mar calmo. O problema é que, por mais que tente me posicionar corretamente, pelas dimensões do quadro, nunca consigo enxergar uma cena completa, ficando uma mistura das outras cenas.
Meu trabalho é receber documentos, pesquisar demoradamente nos armários, carimbar e devolver para o dia seguinte. Burocracia pura e maçante o dia inteiro. Não se enganem se digo que posso conversar com muitas pessoas; como disse, estou no meio de uma quase multidão. Algumas delas entram apressadas aqui e querem sair tão rápido quanto entraram. Não há tempo para conversas. Eu imagino que, na visão delas, eu seria um mal necessário e, quanto menos aturarem minha presença, melhor.
Por isso mesmo, a porta tem que ficar aberta o dia inteiro, salvo quando tenho que ir ao banheiro, no fundo do corredor e usado por outra centena de pessoas que também trabalham no edifício. Pode ser ridículo o que vou dizer, mas gasto entre 7 e 15 minutos para “fazer” o que preciso lá e, quando volto, já tem alguém esperando por mim na porta.
Certa vez, comi algo estragado e precisei sair correndo ao banheiro várias vezes ao dia… Levei a maior bronca do meu chefe porque alguém reclamou das minhas ausências. Acho ele acabou entendendo, contanto que isso não acontecesse outra vez. Como assim? Como farei para controlar isso? Bem, ainda assim assegurei que não. Sabe Deus como farei para contornar o problema na próxima vez!
Quanto ao meu chefe, conheço-o apenas pelo nome em alguns documentos e pelas broncas que ele me dá por telefone. Quando me liga! Sei que trabalha em outro edifício, bem mais confortável e cercado de gente bonita e prestativa. Na verdade, não sei se é isso mesmo ou se é apenas um sonho meu de sair desta toca de ratos.
Faço questão de ir embora pontualmente ao final do meu expediente, até porque ninguém mais circula por aqui. Se necessito de um médico, preciso dar um jeito de arrumar um horário ao meio-dia ou no final do dia. Férias? Aproveito poucos dias em épocas sem muito movimento e o serviço acaba se acumulando a tal ponto que não sei se vale realmente à pena tirá-las. Resultado? Não sei quando poderei usá-las.
Este é o meu trabalho, entediante num ciclo sem fim, a não ser por esta pessoa que me dá um “‘Dia!” de vez em quando, com uma entonação alegre, jovial e feminina. Será alguma admiradora sem coragem de se declarar? Nunca consegui vê-la, apenas escutar sua voz perdendo-se rapidamente pelo corredor. Até tentei levantar e correr atrás dela, mas foi inútil porque ela logo misturou-se no meio de outras pessoas entrando e saindo do edifício. Pego-me pensando numa maneira de flagrar aquela mulher cumprimentando-me, mas ela nunca aparece com regularidade; pode ser hoje, pode ser amanhã, como também pode ser na semana que vem. E nada a ver com horários de início e fim de expediente.
Para ser sincero, preciso dizer que tenho também outra mulher em minha vida. Não, não é o que vocês estão pensando; é minha mãe, que de vez em quando me liga. Eu digo um “Tudo bem!” e desligo, sem dar maiores explicações, após ela ter feito o que fez com meu pai, culminando com sua morte! Não quero nem me lembrar dos detalhes dessa história, porque me entristecem demais e sempre deixo escorrer uma lágrima furtiva. No início, ela insistia para falar comigo; agora, já entendeu que suas tentativas não são bem-vindas. Ela já buscou mil vezes me explicar o que aconteceu, mas nunca aceitei e jamais aceitarei suas desculpas.
É uma pena, porque, no fundo, acabo sendo um solitário e sei que ela também o é. Poderíamos reconectar nosso carinho, enquanto os meus dias se passam vazios, processando papéis numa atividade monótona; minha mãe insistindo para falar comigo; e eu tentando descobrir quem é a mulher do “Bom Dia!”. Isso não é exatamente o que se poderia chamar de vida excitante!
Numa manhã chuvosa, uma mulher telefonou para mim apresentando-se como assistente social e informando-me que minha mãe havia morrido e, claro, eu deveria tomar as providências necessárias.
Nem me lembro o que pensei, mas acho que foi um misto de tristeza, desdém e — tenho que ser honesto — um ar de inconveniência por ter que pedir licença ao meu chefe, providenciar o enterro, e sabe-se o que mais. Em suma, uma mudança inesperada no meu ritmo de vida; claro, ninguém espera isso acontecer, mas todos sabem que é algo inevitável. A parte burocrática foi fácil de resolver, porque estou acostumado a lidar com papéis de todos os tipos; o problema foi que, apesar de tudo, ela era minha mãe e até senti uma ponta de remorso por ignorá-la. Agora, não haveria mais chance de reconciliação, estando eu certo ou não nos meus pontos de vista.
Passada a agitação dos rituais fúnebres, estou de volta à minha rotina, processando a papelada que vem e que vai, aos poucos deixando a lembrança da minha mãe para trás, como se tudo tivesse sido uma grande história escrita num livro que se fechou para sempre. Poderei lembrar de algumas passagens aqui e ali, mas não poderei lê-lo outra vez. Felizmente, estou sendo hábil o suficiente para guardá-lo na prateleira dos já lidos e voltar meus olhos para novas histórias, tais como a de engendrar um plano para ver a mulher do “Bom Dia!” quando ela passasse pela minha porta. Quem sabe, falar com ela, marcar um encontro…
Tentei belas flores num vaso para atiçar sua curiosidade a ponto de ela perder alguns minutos comigo. Tentei chocolates, mas tudo o que consegui foram gulosos roubando os doces. Um dia, dois, uma semana, um mês… E ela não me deu mais o “‘Dia!”.
Talvez, ela soubesse muito sobre mim e tenha descoberto a rejeição por minha mãe e me rejeitou também? Não me lembro de nenhuma mulher em particular no funeral, até porque poucas pessoas foram lá, fácil de explicar, já que minha mãe não era de muitos amigos e nem tínhamos muitos parentes.
Agora, chove lá fora e me lembro que também chovia no dia do funeral. Engraçado: minha mãe não gostava de chuva e não saía de casa quando chovia, nem mesmo quando apenas ameaçasse chover. Ironicamente, acabou saindo com chuva, quando saiu pela última vez de casa.
Não contive uma discreta risada pela ironia da situação; aos poucos, porém, chorei de maneira incontrolável ao me dar conta, em choque, que a mulher que me dava o Bom Dia também nunca aparecia em dias de chuva…
— Mamãe!
No Comments