
Héberos do Amor
“Três formas perfeitas de arruinar amores perfeitos!”.
Em cartaz afixado na janela de bar, as faces sorridentes de dois casais de atores já calejados por muitos palcos encimavam o título hermético da peça teatral. Pouco era possível adivinhar das tramas, mas não havia dúvidas de que as vidas ali retratadas não estariam exatamente respirando a alegria de bem viver.
“Héberos…, Héberos…”. A palavra parecia não me ser estranha, lembrando algum personagem mítico Grego, mas não atinava o significado. Talvez algo diferente, ou algo emotivo. Sim, só podia ser algo emotivo dado a própria descrição do enredo da peça. Na verdade, um belo título! Três palavras dizendo tudo. Quem quisesse saber mais, teria que comprar um ingresso que, escrito em texto miúdo junto com os horários e dias, era um pouco salgado. Só podia ser por causa do concorrido teatro de belos tapetes vermelhos na entrada e corredores, bem como pelos canastrões ali metidos (se o enredo era dramático, porque eles sorriam?).
Um casal de jovens se aproximou para ler o cartaz e o rapaz falou:
– Querida, o que você acha do nome Hébero para nosso filho? É estrangeiro e é bonito…
A expressão facial dela mostrou o quanto ela “amou” a sugestão…
Achei tão interessante as reações deles que resolvi ficar mais um pouco por ali, num lugar um pouco mais protegido, enquanto fingia que consultava meu celular.
Um homem bem vestido olhou e comentou discretamente:
– Hétero? Hummm… Ah, Hébero. O que é isto? – e se afastou sem maior interesse. Talvez tivesse sido atraído pela palavra “hétero”, que se esvaneceu assim que viu o engano. Vai saber!
Três moças olharam e comentaram como uma das atrizes estava bonita apesar da idade:
– Vejam que brincos lindos! Garanto que foi comprado em Paris! Sem nenhuma ruga no pescoço? Ah, que tem retoque, ah, isso tem!…
E por aí foram as observações. Garanto que, se alguém perguntar sobre o que era o cartaz, saberão apenas falar da atriz tal e nada mais.
Outra pessoa chegou apressada, ficou apenas o tempo suficiente para ajustar o celular e tirar uma foto e se afastou igualmente a passos rápidos. Com certeza, irá olhar os detalhes quando estiver sentado eternamente no banheiro. Rio-me sozinho! Se o “serviço” que estiver fazendo for “produtivo”, irá comprar os ingressos na hora! Imagine só: o sucesso de uma peça de teatro depender do que se faz no banheiro? Dou outra risada para mim mesmo.
É claro que precisava assistir à peça para fazer a devida ponte psicológica entre ela e o que as pessoas pensavam a respeito dela.
Cenário despojadíssimo, dividido em dois ambientes: no pano de fundo de um deles, o perfil simples de uma cidade e seus arranha-céus (bem tradicional, não é?); à frente, uma mesa de bar redonda pintada de branco e duas cadeiras tipo medalhão em madeira entalhada e torcida (não pude deixar de criticar mentalmente o mau gosto do arranjo…). Na outra metade do cenário, a disposição bem estilizada de uma sala de estar com duas poltronas simples (pelo menos, as cores combinavam). No canto direito, um cavalete com um cartaz anunciando o título de cada ato, sendo o último o próprio título da peça. Conforme cada ato terminava e com jogo de luzes amortecidas, um dos atores retirava o cartaz para mostrar o próximo. Ou seja, tudo muito básico para indicar que o objetivo da peça era o de realçar os talentos dos atores e colocá-los à disposição do pensamento a ser representado.
Como eu sei que vocês não irão assistir à peça porque ela já saiu de cartaz, sinto-me à vontade para falar dela.
No primeiro ato, um homem e uma mulher, cada um vindo de ponto diferente, encontram-se na mesa do bar, reagindo com cautela um com o outro, observando-se mutuamente entre frases curtas de reconhecimento. Pelas falas, percebe-se que estão ali porque arranjaram um encontro numa dessas arapucas de namoro a buscar outras emoções fora do ambiente conjugal. Entre taças de uma bebida azulada (que nunca se esvaziava), entre risadas mal disfarçadas e expressões corporais que demonstravam certa impaciência e desconforto, a conversa vai se desenrolando e, aos poucos, descobrem que as semelhanças que apresentavam nas conversas escondidas eram as mesmas coisas que faziam as diferenças na vida comum. Supostamente terminada a bebida azul e chocados com as descobertas vazias que fizeram, separam-se quase sem se despedirem. Para ser franco, foi apenas um “Até outra hora!” que significava literalmente “Assim que chegar em casa, vou apagar imediatamente o perfil desse(a) idiota!”…
No ato seguinte, na sala de estar, o outro casal discute, pela milésima vez, as mazelas da vida, as aflições da meia-idade, os pequenos detalhes que incomodam um ao outro e o próprio propósito do seu relacionamento. Momentos que já poderiam ter sido enterrados há muito tempo voltam à tona, mesmo sem motivos para tal.
O interessante é que eles próprios reconheciam que certas coisas do passado e que eram apropriadas para aqueles momentos do passado, agora soavam tão estranhas e tão negativas porque “essa era a intenção sua naquela vez que…”, como se aquele ou aquela tivessem premeditado tal ato perverso só para atazanar a vida do outro décadas depois.
Na discussão infindável de querelas mútuas, o assunto resvala mais uma vez para a separação e o marido comenta o caso do casal do ato anterior, que não aproveitou a oportunidade para variar um pouco e que deveria ter ido às vias de fato; pelo menos, eles “teriam um prazer um pouco diferente para aplacar as amarguras da vida conjugal”, ao olhar do modo acusativo para a esposa. A esposa olha para a plateia como para esclarecer que o que ele estava dizendo era licença poética do autor da peça e que aquele argumento não fazia sentido, coisa aliás bem típica do marido, agora olhando ironicamente para ele.
Aos poucos, cansados de esgrimir argumentos e desculpas que eram defendidos com mais ataques, a conversa vai morrendo até o silêncio tomar o semblante pensativo do casal. As luzes amortecem e a coisa termina por aí.
Finalmente, num milagre que somente o teatro pode materializar, vemos os quatro atores transitando entre a sala de estar e a mesa do bar (sim, a bebida azul lá estava), todos falando quase ao mesmo tempo na infelicidade que cada um sofria, porquanto o outro não entendia o sofrimento alheio e… e…
Confesso que fiquei um tanto confuso nessa parte porque tudo se parecia como aquelas peças de protesto onde todo o mundo fala o que quer, na hora que quer, sem existir um diálogo organizado, muito menos uma história bem alinhavada. Era como pomposamente chamavam de “Cacofonia Sinfônica” ao caos absoluto.
A balbúrdia ficou interessante quando um deles ergueu a voz e perguntou aos outros:
– A conversa comigo mesmo se chama monólogo, certo? Todos concordaram, curiosos. Uma conversa a dois é um diálogo. E uma conversa a quatro?
Silêncio. Finalmente, alguém disse algo sensato que provocou um raciocínio inteligente ou, pelo menos, a tentativa de pensar sobre o mesmo assunto ao mesmo tempo.
– Quatrálogo? Quadrólogo? Quatrílogo? – Cada um dando um palpite.
– Vocês sabiam que a palavra diálogo não significa conversa a dois? Se assim fosse, deveria se chamar dílogo.
Eu juro que no teatro inteiro não se ouviu respiração na expectativa da explicação, a qual veio após o ator se manter enigmaticamente imóvel por alguns segundos:
– Pois é, diálogo significa as palavras transitando de um lado para outro, não necessariamente entre duas pessoas…
Era flagrante o sorriso de vitória do personagem ao ouvir os outros três voltarem às discussões caóticas, enquanto a própria plateia murmurava aqui e ali, agitada nas cadeiras.
– Se for um quatrólogo, quatrílogo, seja qual for a palavra, ou até mesmo um diálogo, e aí? – perguntou um outro ao dar-se conta do engano que haviam se metido.
– Daí, que nada! É só para que façamos uma reflexão sobre esta conversa que é vazia, sem sentido, pura perda de tempo, conversa de Grego, tal como o título da peça que não significa nada, nada de nada!
Os quatro se entreolharam, emudecidos pelo choque da realidade. A plateia também ficou ansiosa, aguardando o desfecho. Quando começou um tossir discreto, aqui e ali, mostrando impaciência, os personagens levantaram-se e, dando-se as mãos, curvaram-se em respeito. Os aplausos, tímidos, foram aumentando ruidosamente até a pura ovação, acompanhados de intensos assobios de aprovação. Não satisfeitos, ainda batiam com os pés no chão, fazendo um barulho cavo. Imagino que os ratos tenham fugido de puro pavor, já adivinhando o final dos tempos!…
Numa apresentação musical, o público dá o sinal de aprovação pedindo bis; numa peça teatral, o bis não existe, mas o aplauso insistente, sim. Foi o que aconteceu. Ninguém gritou “O autor! O autor!” e nem foi necessário porque ele apareceu assim mesmo e, com ele, os aplausos recrudesceram mais vivos ainda.
Já em meio ao rio caudaloso dos espectadores espremendo-se pelos corredores da saída, preciso confessar que ainda coçava minha cabeça confusa ouvindo comentários elogiosos que variavam entre a Metafísica pura e o entoar de loas e hosanas aos deuses dos teatros…
De fato, só me restava a aceitar a ideia flagrante de que, para entender as agruras da vida, era necessário saber Grego!
A palavra Hébero não existe, tratando-se de uma invenção puramente minha. Na verdade, eu torci, manipulei e alonguei a palavra Érebo que, em Grego, chamava-se um personagem da mitologia que personificava a escuridão. Daí, resultou a significação do Inferno ou um lugar muito próximo dele e abaixo da terra.
Reparem que as três histórias têm algo em comum que é uma certa onda de confusão, desamor e desentendimento; e esta onda foi justamente a que inspirou a criação de uma palavra que desse tal significado, mas, ao mesmo tempo, não ficasse tão comprometida com um lugar extremamente desagradável…
Espero que ninguém identifique seus filhos com tal nome!
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