
Reflexões
Enquanto aguardava a chamada para embarque no próximo voo, resolvi verificar um texto que havia publicado há algum tempo atrás e que me parecia estar errado num certo parágrafo. Como sempre acrescento uma ou mais fotos que tiro aqui e ali em cada postagem, uma delas acabou por chamar a atenção de outro passageiro sentado ao meu lado.
– Bela foto e bom texto – disse-me ele. Gosto destes escritos porque eles possuem particularidades que não havia notado em outros contos.
Eu ia agradecer o elogio mas achei melhor permanecer no anonimato para obter uma opinião mais genuína sobre meu trabalho.
– Eu estou tomando contato agora com este escritor. Quais são estas particularidades? – fiz força para disfarçar minha curiosidade.
– Raramente, este rapaz (ele me chamou de rapaz!) chama as pessoas pelos seus nomes próprios. Ou é “aquele homem”, ou “a médica”, ou, então, “o Inspetor”, mas nunca os paulos ou marias da vida. Dê uma rápida passada de olhos neste texto que você está lendo e comprove o que digo.
Claro, o homem estava com a razão porque eu, de fato, quase nunca dou nomes aos meus personagens. É o meu jeito de escrever e de relacioná-los com o mundo. Não sei a razão exata para esta forma de identificação mas, pensando bem, acho que é para mostrar que eles são secundários e não existem de fato embora todo o santo vivente seja chamado por um nome em particular; porém, eles são apenas figurantes, tal como num teatro de marionetes atuando dentro do meu espaço de criação. Fingi observar a tela enquanto rolava o texto até o final e comentei:
– De fato, nenhum nome! Que interessante! E como ele consegue estabelecer diálogos, descrições de situações sem dar nomes? A leitura e o entendimento do texto não ficariam confusos?
– Pois é, eu também achava isto mas, lendo outros textos escritos por ele, notei que em alguns casos ele usa um qualificativo, quase como se fosse uma ironia, em geral a profissão do personagem. Eu próprio me peguei ignorando este qualificativo e cheguei à conclusão que ele até seria desnecessário. Ou seja, este rapaz (de novo!) joga as personalidades pelo valor que elas têm e não pelo que elas são ou representam. É como se elas fossem massas vivas envergando uma máscara adequada a algum papel útil dentro deste mundo irreal que o autor cria. O mais interessante é que todos transmitem alguma mensagem relevante, ou seja, um significado importante; assim, nomes não têm exatamente preponderância mas, sim, apenas a essência deles e o que eles fazem de bom ou de ruim.
– Ou seja, filosoficamente falando, o autor seria um Utilitarista, no sentido de que todas as ações cometidas pelos personagens visariam um bem-estar geral mirando em consequências responsáveis por estas mesmas ações?
– Talvez – disse o homem. Não sou afeito a filosofias mas eu me atreveria a complementar que não existem personagens sem função e secundários nos textos. Todos têm uma missão a cumprir, de alguma forma, ou então, não existem ali. Sim, eu concordaria, todos têm uma utilidade.
Confesso não haver jamais pensado desta forma.
– Quer ver uma coisa mais interessante ainda? – perguntou-me o homem. Vários textos contém mortes, sempre uma somente, e nada violentas, mas muito bem encaixadas nas próprias histórias. Algumas até são tão sutis que fica difícil identificar o que está acontecendo.
Fiquei genuinamente surpreso porque eu, autor dos textos, não havia me dado conta deste fato. O homem sorriu com um sorriso daqueles de vitória por me ver boquiaberto. Onde eu “errei”, quero dizer, como assim “eu escrevo sobre a morte?” De tão surpreso, só me ocorreu perguntar:
– E este aqui, tem alguma?
– Ah! – disse ele – não vou contar para não estragar a história. É sobre duas pessoas conversando no aeroporto…
Neste momento, fomos chamados para o embarque. Nos separamos porque tínhamos diferentes prioridades de embarque. Melhor assim; e se a atendente resolvesse me desejar uma boa viagem chamando-me pelo nome? Estragaria o texto e arruinaria meu disfarce.
Já em pleno voo, pensei em super-heróis dos filmes e histórias em quadrinhos. Cada um possui uma especialidade, digamos, a visão de raio-x. Observem bem que o possuidor deste super-poder jamais o usa para objetivos – vamos chamar assim – escusos. Ele nunca olha através das roupas de mulheres, nem o que as pessoas fazem entre quatro paredes, a não ser quando existe algum bandido a ser capturado ou quando algo precise ser observado com mais detalhes, tudo dentro da lei. Ou seja, todos os super-heróis com os seus super-poderes são implícita e explicitamente super-honestos, agindo super-corretamente dentro dos limites do bom senso e do que se espera de um super-herói. Do contrário, seria um super-vilão.
Dei uma risada discreta ao pensar que eu também sou um super-herói. Sim, eu tenho um super-poder, aquele de determinar o que um personagem meu deva ou não fazer dentro do contexto da história que eu escrevo. Querem uma prova? O homem com quem eu conversava falou que o “autor” (eu) raramente usava substantivos próprios e que frequentemente provocava uma morte. Pois bem, até agora, não usei qualquer nome pessoal. Aliás, lembram que ele mesmo mostrou que eu não havia usado nenhum no texto?
E a morte? Nem sim, nem não. Ele fez segredo para não estragar o final. Mas, eu posso mudar isso, afinal, sou um super escritor por poder decidir quem vive ou quem morre. Por exemplo, eu poderia ter provocado um ataque cardíaco do homem antes do embarque; porém, haveria uma comoção no ambiente, médicos, e quem sabe, atrasaria o voo me prejudicando. Não foi uma boa ideia, até porque eu estaria sendo muito egoísta ao pensar somente em mim e na minha conveniência. E se homem possuísse uma família, mulher e filhos?
Numa área restrita de um aeroporto, tal como a dos embarques, as opções ficam um pouco limitadas. Nem pensar em ataque terrorista já que todos seríamos afetados. Esquece esta também! Eu próprio poderia sofrer algum problema físico e não chegar vivo ao destino. O problema é que eu não conseguiria terminar as minhas reflexões e os meus leitores ficariam sem saber o que aconteceu até a última palavra. De novo, notem o egoísmo generalizado, neste caso, a dos leitores, sem se preocuparem comigo ou com minha família…
Mil elucubrações passam pela minha mente tentando inventar alguma situação plausível para inventar uma morte bem de acordo com meu estilo de escrever, mas decidi deixar todo o mundo tranquilizado porque todos continuaremos nossas vidas normais. Ademais, notei que minha vibração mental estava baixando ao imaginar mortes assim ou assado. Nada bom para minha saúde!
Enfim, eu e o homem trocamos algumas palavras sobre assuntos gerais enquanto aguardávamos a bagagem, a minha demorando bastante.
Ao sair, notei um burburinho de gente se aglomerando no meio-fio, algumas pessoas correndo. Pude notar, entre a movimentação, que havia um homem caído na rua. Acho que foi atropelado. Seria aquele homem? Voltei-me e procurei uma outra saída porque sou um super-escritor e decidi que, através do meu super-teclado, não haveria mortes porque sou super-honesto e ajo super-corretamente.
Enfim, eu e o homem trocamos algumas palavras sobre assuntos gerais enquanto aguardávamos a bagagem. Despedimo-nos, saindo cada um para um lado diferente, ambos felizes por vivermos nossas vidas normais junto às nossas famílias…
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