Remédios
Quem passa por ali nem nota 0 recesso no prédio e uma porta lateral em meio ao recesso.
Estranho; normalmente, as lojas possuem portas que dão direto para a calçada, não só para ficarem mais visíveis aos clientes, como também para aproveitar melhor o espaço interno.
Nesta farmácia, porém, havia uma entrada que cabia uma pessoa deitada (e alguns mendigos às vezes dormiam ali nas noites de chuva e de frio), e a porta não ficava no fundo, mas na lateral desta entrada. Ainda mais estranho, as duas pequenas vitrinas com o nome do negócio ficavam uma de cada lado da porta e a parte que dava para a calçada era fechada.
Logicamente, poucos notavam que ali havia uma farmácia dirigida por dois profissionais cuidadosos, o pai de uma bela moça, este já nos seus cinqüenta, e o genro. Eles preferiam assim, poucos clientes, bem recomendados e bem atendidos em suas necessidades de produtos para a saúde e bem estar da família.
Eu sei de tudo isto porque era amigo muito chegado deles e acompanhei boa parte das suas vidas e dos seus negócios.
Agora, muitos anos mais tarde, acabei de entrar na farmácia a pedido do pai já bem velho. A poeira cobria tudo e teias de aranhas se agrupavam nos cantos da peça, do balcão e dos armários. Dentro destes, vários vidros escuros com produtos que pareciam ter secado ou escurecido pelo tempo. Nos balcões dava para ver, através dos vidros empoeirados, produtos de higiene e de beleza que se tornaram, eles próprios, incapazes de proteger humanos dos ataques das bactérias ou de fazer um rosto mais bonito. Tudo parecia estar em ordem, bem organizado, como se ainda ontem a loja tivesse funcionado normalmente, apenas o tempo agindo e o movimento da cidade permeando-se pelas frestas e deixando o testemunho do local sem clientes. Eu conhecia o local como a palma da minha mão porque já havia estado ali inúmeras vezes quando ainda o sogro e o genro recebiam quem entrava com muita conversa boa e conselhos proveitosos.
Eu sei o que vocês estão pensando: “Colocadas as coisas desta forma, o que eu estaria fazendo ali?” Como disse, foi o velho que me pediu para que eu desse a última olhada como estava a Farmácia e contasse tudo a ele. Ele sabia que não resistiria mais, mas queria a derradeira sensação de como as coisas haviam parado a muito. Ele não podia mais andar e muito menos transitar por escadas; por isto, eu fui o escolhido de confiança. Também me pediu para não tirar fotos pois não poderia vê-las. E eu sabia a razão: ele não queria mais ter lembranças do passado.
Passado!…
A farmácia que nunca mais abriu desde que os remédios que deveriam curar, mataram. Talvez esse deveria ser o título da minha história. Curiosos? Pois, deixem-me contar que está por trás de tanto abandono e verão porque cada um de nós tem sua luta pessoal, com amores, desgostos, alegrias e tristezas. Não julgo ninguém pelos acontecimentos e aceito os fatos tais como estão colocados. Acredito que vocês venham a se escandalizar ou mesmo simpatizar com os personagens; se quiserem julgá-los, peço apenas que o façam no papel de juiz imparcial.
Este homem sempre gostou de remédios e lutou muito para estudar e comprar uma pequena farmácia – esta Farmácia – após se formar. Com o tempo, casou-se e teve uma filha. Ele sonhava secretamente em encaminhá-la para o mesmo ramo, até porque um dia precisaria de alguém que continuasse o negócio; porém, os interesses dela eram outros, nenhum deles ligados a remédios.
O pai sentia uma pequena mágoa por causa disto, mas, no fundo, resignava-se com um suspiro e respeitava as decisões dela.
Já moça, pareceu que os deuses haviam ouvido as preces do pai porque ela acabou por se enamorar de um jovem que gostava, nada mais, nada menos, de… remédios! E, o melhor de tudo, acabaram por casar-se tão logo o rapaz se formou em Farmácia. Como era de se esperar, tornou-se sócio do sogro e, juntos, tocaram o negócio que ambos gostavam de fazer.
Eu sei, eu sei; a história está indo muito bem, tem que haver algo de errado, certo? Deve haver algum capítulo triste neste livro…
No nosso caso, aconteceu que o jovem casal queria (e, claro, o pai também!), um filho. Após algum tempo de muitas angústias, ela finalmente conseguiu engravidar, mas a saúde se deteriorou muito a ponto de ficar quase sempre de cama. O pai e o marido se desvelavam em cuidá-la para que tivesse os melhores médicos e os melhores remédios (isto eles sabiam fazer bem!). Constantemente, havia uma pessoa cuidando dela para que tivesse o melhor.
Já em meio à gravidez, ela teve uma crise enquanto teimosamente insistia em olhar o movimento da rua pela janela. O pai e o marido foram chamados às pressas. O estado dela não era bom e exigia tomar uma dosagem extra de dois remédios combinados. Rapidamente, o marido os preparou e deu para ela. Em poucos minutos ela sentiu espasmos fortes, teve convulsões, respiração forte como quando não se tem oxigênio e o coração parou de bater. Em vão tentaram reanimá-la. Quando o médico chegou, já era tarde. O laudo foi curto: o corpo já fraco não resistiu ao avanço da gravidez.
O marido chorava e se lamentava copiosamente junto à beira da cama. O pai, taciturno, observava a cena mal contendo as lágrimas. Seus olhos circularam pelo quarto, como querendo lembrar-se destes momentos para sempre. Quando, finalmente, seu olhar pousou nos remédios, algo estranho passou-lhe pela cabeça. Mais de perto, entendeu o que se passou. O marido havia misturado as drogas erradas e, ao invés de acalmar a pulsação combalida da filha, aumentou-a ainda mais e o resultado foi trágico. Era óbvio que foi um acidente do momento de urgência e preferiu se calar para não aumentar ainda mais a dor de todos. Escondeu discretamente o remédio errado para que a verdade não surgisse.
Pai e genro choraram convulsivamente durante todo o processo do enterro e ficaram de luto por um mês sem abrir a Farmácia.
Quando finalmente decidiram tocar a vida para frente, o ambiente conjunto dos dois não era mais o mesmo. Pouco falavam e o ar ficava quase irrespirável pela dor pesada que pairava. Fora do trabalho, cada um ia para seu lado e raramente se encontravam.
O pai parecia enfrentar melhor todo o drama, mas sempre quieto e tentando esconder o choro furtivo. O genro, ao contrário, lamenta-se sozinho e frequentemente era visto a chorar convulsivamente. Como resultado, sua saúde começou a definhar. De início, era o desleixo com os tratos na Farmácia; depois, ausências cada vez mais frequentes, justificadas pela perda da vitalidade física e moral, até que não mais se levantou da cama e acabou por morrer praticamente esquelético por absoluta falta de vontade de se alimentar. O médico diagnosticou a causa da morte como profunda tristeza e apatia ante os severos acontecimentos pelos quais ele passou.
Pouco tempos depois, o pai fechou a Farmácia sem maiores explicações, encerrou-se em sua própria casa e lá ficou até me chamar hoje.
Circulei mais um pouco pela Farmácia porque também sabia que nunca mais entraria aqui. Tinha o pressentimento de que algo ruim poderia acontecer. Entrei num cubículo que era o escritório: todos os papéis bem arrumados, os livros fiscais colocados ordenadamente nas prateleiras. Inúmeros livros científicos da profissão, alguns ainda com marcadores em páginas que imaginei ser para pesquisar um remédio ou doença em particular. Abri uma a uma as gavetas da escrivaninha: apenas papéis comerciais, notas, e receitas de remédios. Na última, fechada à chave que consegui abrir com o molho que me foi dado, encontrei um vidro pequeno, escuro, diferente daqueles dos balcões da frente, cujo rótulo e letra também destoavam. Achei curioso o fato e resolvi pesquisar nos livros o que era aquele conteúdo. Nenhum dos livros tinha qualquer referência ao nome escrito, até que achei um pequeno volume escondido atrás de outros, com um marcador vermelho. Lá estava ele: em pequenas doses, revitalizava os organismos fracos; em doses moderadas, auxiliava no relaxamento dos corpos com muita energia; mas, em doses continuadas, provocava um excesso de relaxamento e enfraquecimento corporal, podendo ser fatal em organismos já debilitados por outros problemas.
Meditei por alguns momentos, peguei o frasco e o compêndio e os coloquei no bolso do casaco. Fechei cuidadosamente a Farmácia e saí.
Alguém precisava limpar aquela sujeira, vocês não acham?
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