Quarto 568
Quando cheguei ao quinto andar do hospital, ainda de madrugada, passei por uma recepção onde haviam duas enfermeiras e um médico de plantão confabulando em voz baixa. Uma delas notou minha presença, deu-me um breve sorriso de reconhecimento – a que eu retribui com um discreto aceno com a cabeça – e continuou a conversa.
Enquanto caminhava pelo corredor à meia-luz, eu parecia sentir uma calma aparente mas pesada, ouvindo-se uma tosse aqui, um gemido leve ali e os sempre presentes bipes monótonos e constantes das máquinas que controlavam as vidas dos pacientes, como que a pulsar no mesmo ritmo delas, dizendo a cada bipe: “Vi-vo!”, “Vi-vo!”, “Vi-vo!”… Não me atrevi a pensar numa palavra ou frase que se encaixasse quando as máquinas indicassem alguma situação emergencial.
Interessante como a tecnologia evoluiu a ponto de ficar 24 horas por dia cuidando de pessoas, palpitando, medindo, quase que “sentindo” o que sentimos e avisando quando algo estiver fora do normal. Quantas vidas foram salvas simplesmente porque uma máquina estava ao lado. De outro modo, seria necessária uma enfermeira ou enfermeiro e, mesmo assim, este profissional não poderia estar medindo nossos pulsares a cada segundo, numa profusão de sinais diferentes. Seria impossível. Gostando ou não, elas, se não conseguem prolongar nossas vidas, pelo menos fazem um grande escândalo quando estamos à beira do outro mundo.
Em seu quarto, minha mãe parecia dormir tranquilamente, embora internada há bastante tempo, com os médicos alertando que seu estado inspirava muitos cuidados, percebendo-se facilmente como suas energias diminuíam a cada dia. Seu corpo, emagrecido pelo sofrimento, e os braços, com hematomas por contínuas injeções de soro e remédios. Fios de várias cores saiam dos seus ombros, peito e pescoço, e iam para uma máquina salvadora de vidas, pendurada num suporte móvel quase junto à parede. Ela poderia quantificar os sinais emitidos pelo corpo da minha mãe, mas não poderia medir o que corpo estaria sentindo, a dor sufocada por analgésicos constantes, o desconforto de não estar na própria casa e a expectativa de que cada minuto que passava fosse melhor que o minuto seguinte.
Sentei-me, em silêncio, observando-a. Impossível acreditar que esta mulher tão fraca agora fosse aquela mulher forte que trabalhava dez ou doze horas por dia costurando roupas em casa para clientes exigentes. Eu e meus irmãos sabíamos que ela fazia isto para dar uma vida decente e estudo para nós. Por isso, não reclamávamos porque ela não tinha tempo algum para nós em função de um constante vai e vém de encomendas urgentes ou alguma cliente visitando para provar uma roupa. Evitávamos estar junto dela porque sabíamos estar atrapalhando. Na verdade, ainda acho que ela secretamente não gostava de que as clientes nos vissem porque ela não tinha tempo para fazer roupas boas para nós, embora fizesse maravilhas para as clientes.
Num certo momento, ela se mexeu devagar, conforme o corpo alquebrado permitia, passeou os olhos pelo quarto, talvez pensando: “Onde estou?” Então, viu-me.
– Meu filho! Que bom ver você aqui! – Ela tentou erguer os braços para me abraçar, mas sua fraqueza não permitiu.
Abracei-a demoradamente, como há muito tempo não o fazia.
– Como você está, mamãe? Vejo que está com aspecto um pouco melhor. – Era uma mentirinha humanitária que todo mundo conhece, mas todos aceitam, mesmo sabendo que o doente possa estar numa situação crítica.
– Por onde você andava, meu filho, que não aparecia mais? Seus irmãos sempre vêm aqui, mas não me lembro de você vir junto.
– Eu tenho andado bastante ocupado, mamãe, mas venho frequentemente à noite quando você está dormindo. Fico aqui cuidando de você para que você se restabeleça o mais rápido possível.
– Sim, sei, você sempre foi muito ocupado. Desde pequeno, você sempre tinha algo para fazer. Ou era um livro para ler, ou os deveres da escola, ou ajudando-me nas lides de casa. Quando você começou a trabalhar, muito cedo, aí mesmo que o seu tempo ficou bem reduzido para estar comigo. Eu gostava muito da sua companhia. Não que não gostasse da dos seus irmãos, mas você sempre tinha uma idéia diferente e eu ficava fascinado com elas.
Sentei-me ao lado dela e agarrei sua mão fraca e macilenta.
– Sabe do que eu gostaria agora, meu filho?
Eu já sabia: era música. Ela gostava de ouvir orquestrações de peças clássicas, principalmente valsas. Ela sempre tinha consigo um velho gravador e algumas fitas cassetes com músicas que eu e meus irmãos gravamos a muito tempo atrás. Volta e meia o gravador encrencava ou uma fita estragava pelo uso, mas sempre dávamos um jeito e ela continuava a ouvir as mesmas peças quando tinha tempo. Ela não entendia nada de música, mas adorava-a. Claro, não tinha paciência para ouvir uma sinfonia completa e simplesmente detestava jazz e a cantoria das óperas. Rock jamais passou pela cabeça dela em ouvir. Lembro-me uma noite, quando ainda era pequeno, ela voltando de uma palestra motivacional onde falaram que havia um músico famoso, cujo nome era difícil de pronunciar e do qual ela não se lembrava, que observava os pássaros, as árvores, os rios e compunha sinfonias. Eu também fiquei extasiado, mas meu irmão, um sabe-tudo, nos disse que ela estava falando da “Sexta Sinfonia, A Pastoral”, de Beethoven. Desde então, aprendi também a gostar de música e a Pastoral passou a ser uma das minhas favoritas. Nós até compramos uma fita original para ela mas, paradoxalmente, ela não a ouvia porque era “muito longa e difícil de entender”.
Minha mãe era assim, simples no pensar, muito honesta em tudo que fazia e inocente nos negócios. Ela cobrava o mesmo preço para fazer uma peça de vestuário usando um modelo básico ou um modelo requintado com tecidos caríssimos, contanto que levasse o mesmo tempo de trabalho. Jamais ouvi alguma queixa de alguma cliente dela e ela trabalhava duro para dar o necessário estudo para nós até o início da faculdade; depois, tínhamos que nos virar sozinhos. Ela passou tudo isto para nós e, durante muito tempo, eu próprio não sabia o que cobrar pelos serviços que eu fazia para os meus clientes na minha vida profissional.
Coloquei uma fita no gravador que a muito tempo já não reproduzia mais direito os sons. Ocorreu-me o pensamento de que o gravador já estivesse tão no limite das forças quanto o corpo de minha mãe.
– Está boa a música assim, mamãe? – Ela estava com os olhos fechados e não vi reação por parte dela. Fiquei um longo tempo segurando a mão dela…
Aos poucos, seu braço começou a ceder e os movimentos vitais mostrados nos monitores foram se reduzindo. Num certo momento, o bipe compassado se transformou num som contínuo, avisando que algo de anormal estava acontecendo. Eu não me alarmei porque sabia o que se passava. Ouvi passos rápidos e uma enfermeira entrou. Ela verificou os aparelhos, mexeu num ou dois cabos para ver se não era alguma falha, mediu o pulso de minha mãe e apertou a campainha de emergência.
Aproximei-me e sussurrei ao ouvido de minha mãe:
– Mamãe, venha, mamãe. Vamos embora, porque você está boa agora!
Ela se ergueu num movimento rápido, respirou fundo como se tivesse vindo à superfície num mergulho prolongado e olhou para todos lados como assustada e surpresa. Passei meu braço ao redor dela e a amparei.
– Está tudo bem agora, mamãe. Venha comigo. Você acabou de ter alta e não precisa mais ficar no hospital.
Saímos caminhando devagar porque ela ainda parecia se sentir fraca. Olhei para trás e vi um médico fazendo as últimas verificações de praxe na paciente do Quarto 568, enquanto a enfermeira desligava o gravador.
Ao passar pela portaria, a mesma enfermeira olhou para nós, sorriu de leve e nos abanou levemente em despedida.
(A foto acima é a visão daquele quarto através da sua janela)
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