
Mala de Dinheiro
Depois de muitos anos, sentia uma sensação estranha voltando ao lugar onde nasci e cresci.
Conforme o ônibus se aproximava do ponto final, as luzes dos postes tornavam-se cada vez menos espaçadas e eu forçava a memória para reconhecer os lugares por onde passei muitas vezes. Uma que outra casa parecia-me familiares – talvez fosse a noite que não me deixava ver bem ou mesmo a velocidade do ônibus deixando tudo borrado – o fato é que eu estava confuso.
Porém – pensei comigo mesmo – pouco me importa se tudo está igual ou não; eu sei exatamente o que quero e, tão logo o consiga, não verei mais esta cidade para gozar um pouco a vida longe daqui.
Gozar a vida! Frase engraçada, meio obscena, que somente uns poucos podem dizê-la e pô-la em ação sem remorsos.
Gente com dinheiro, por exemplo. “Oh! Precisamos de mais uma piscina para os amigos dos nossos filhos, querido! Sem problemas, querida! Amanhã mesmo, chamarei dois arquitetos e quatro engenheiros para fazer a piscina dos sonhos dos amigos dos nossos filhos!” Ou, então: “Papai, estava pensando: para meu aniversário, gostaria de levar meu namorado e seus pais à Europa e visitar museus e as belas praias italianas e gregas. Posso papai? Sem dúvida, filha! Amanhã mesmo, contactarei nosso agente de viagens e marcaremos as passagens e os hotéis de classe, digamos… Por trinta dias? Oh! Papai, você é tão bom para mim!”
Nem todos têm este requinte, porém. Aquele sovina para o qual eu trabalhava, para o qual eu perdi muitos anos da minha vida, é cheio de dinheiro e nem sabe aproveitá-lo. Pior, nem sabe como guardá-lo. Mas, eu farei um favor a ele pois sei muito bem como lidar com dinheiro. Assim que eu puser as mãos nele, é claro! Daí, eu também poderei desfrutar das benesses de uma boa grana!
Sem rodeios e segredos, meu plano é simples, direto e rápido: “tomar conta” da mala de dinheiro que o sovina guarda em sua casa porque não confia em bancos. E eu sei onde está escondida e também sei como chegar nela sem ser notado e sem forçar portas. Ele já deve estar velho e sem forças; à noite, basta entrar de mansinho, pegar a mala, sair novamente de mansinho e pegar o ônibus que sai da cidade ainda de madrugada. Nada exigente! Será como tirar um pirulito de uma criança; digo, tirar a mala de um velho.
Admiram-se vocês como sei de todos detalhes?
Bem, eu trabalhei para ele por muitos anos, ganhando uma miséria, enquanto eu via o quanto ele ganhava explorando outras pessoas. Um dia, ele me mandou tirar o pó de um armário que ficava bem perto de uma janelinha que dava para o interior do prédio. A janela estava protegida por um papel para que ninguém espiasse sua vida particular (quem iria espiar por cima de um armário?). Mas, um canto do papel estava rasgado, e como a curiosidade matou o gato, e o vi abrindo uma pequena porta disfarçada num móvel, tirar uma mala e colocar dinheiro nela. E a mala estava cheia, tão cheia quanto ficou minha cabeça com a possibilidade de meter a mão naquela dinheirama toda! Na excitação, perdi o equilíbrio, caí por cima de cadeiras e quebrei várias delas. Machuquei-me é claro, mas a preocupação do velho era com o estrago que fiz. Desnecessário dizer que fui obrigado a devolver cada centavo do prejuízo, tirando um pouco todo mes do meu magro salário; do contrário, ele chamaria a polícia. Só não fez isso porque sabia que, eu preso, não poderia pagá-lo.
Durante os dois anos desse sofrimento, investiguei como chegar ao dinheiro, até que descobri uma entrada nos fundos que não era usada e que estava bloqueada por tijolos que estavam lá a não sei a quanto tempo. Na verdade, os tijolos eram a porta. Bastaria tirar alguns e pronto! A casa estaria à minha disposição.
Eu esperei uma boa oportunidade para passar da idéia para a prática mas o temor de que algo desse errado fez-me adiá-lo tanto que, quando terminei de pagar o estrago, o velho imediatamente me demitiu. Sem um centavo de compensação! Fiquei tão fulo de raiva que tomei umas ou outras, ou melhor, muitas e outras no bar em frente e acabei aprontando um bocado até o delegado ser chamado. O delegado, certamente instigado pelo velho, foi franco: a cadeia estava à minha disposição a menos que eu tomasse o próximo ônibus para bem longe.
Agora, estava voltando para cobrar minha indenização. Faria uma sondagem para ver se tudo estaria tal como eu imaginava e, então… Bem, eu iria gozar a vida. Obscenamente ou não, isso ficaria a meu critério.
Por vários dias, discretamente investiguei todo o ambiente e pareceu-me que as coisas continuavam as mesmas. O velho ainda vivia mas já não negociava mais. Não tinha como saber, mas imaginava que ele ainda guardaria o dinheiro tal como o fazia antes.
Confiante, aproveitei uma noite sem lua e baixa temperatura (como fazia frio nesta cidade!). Isto faria com que o sovina estivesse quentinho debaixo das cobertas, muito certamente, dormindo.
Segui meu plano, entrei na casa, abri o armário secreto e, quando peguei a mala, tropecei numa cadeira e caí sobre outras (ah! estas cadeiras do velho, tão frágeis e tão baratas). O barulho foi tremendo, o velho acordou e tocou uma campainha que alertou toda vizinhança. Saí correndo com a mala pesada e com algumas pessoas atrás de mim.
Não sabia exatamente para onde ia mas, na corrida, reconheci o muro do cemitério e pulei dentro dele. Claro, ninguém tentou me seguir. Quem entraria num cemitério numa noite escura como aquela? Minha esperança era atingir o outro lado mas algumas pessoas também tiveram a mesma idéia e se posicionaram em pontos estratégicos para que eu não saísse. Para complicar, chegou a polícia, chefiada pelo tal delegado, com cobertores e café quente. E eu comecei a sentir frio, só com a roupa do corpo e uma mala cheia de dinheiro. Dentro de um cemitério. Numa noite escura.
Num momento de crise como este, fiz o que qualquer pessoa sensata faria: tateando no escuro, escondi-me atrás de um mausoléu, tirei o dinheiro da mala e tentei cobrir-me o melhor possível com ele. Quem sabe todo mundo fosse embora e eu poderia escapulir dali. Cansado, amedrontado e com frio, adormeci.
Alta madrugada, acordei. Não vi ninguém na rua. Na verdade, o que eu vi vocês até poderão não acreditar. Não, não vi nenhum fantasma ali. Apesar do escuro, eu enxergava tudo, especialmente a mim mesmo, deitado e imóvel, como se estivesse dormindo. Só que eu estava gelado e duro, como se fosse um cadáver. E eu era um cadáver! Eu havia morrido! Num cemitério e todo coberto por uma montanha dinheiro incapaz sequer de me proteger do frio. Não só não pude gozar a vida com ele, como também foi-me totalmente inútil na minha morte.
Fiquei ali um bom tempo me examinando e pensando nos próximos passos.
Não sentia mais frio, mesmo com o vento soprando de leve e espalhando o dinheiro. Uma nota passou perto do meu rosto e um calafrio subiu-me pela espinha que não mais possuía. Ironicamente, nem o velho e nem eu, por mais vivos que fôssemos, poderíamos ter usado o dinheiro – aquela mala cheia de dinheiro – porque ela continha cédulas que o velho foi avaramente juntando ao longo de muito tempo e a maioria nem valia mais! O sovina vivia achando que era rico mas, na verdade, só possuía um monte de papel sujo.
E eu morri por esta “riqueza”…
E, agora, que faço? Rio ou choro?
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